Pelotas tem 10 mil pessoas em fome grave e discute plano para reverter crise alimentar

Pelotas enfrenta uma crise alimentar. Estimativas apontam que cerca de 10 mil pessoas no município vivem em situação de fome grave e até 40% da população está em risco de insegurança alimentar. A ausência de políticas públicas eficazes agravou o cenário nos últimos anos, com o não cumprimento de diretrizes estabelecidas em conferências anteriores.

Para enfrentar essa realidade, a Universidade Católica de Pelotas sedia o VI Seminário Terra, Água e Alimento, que nesta edição incorpora a Pré-conferência de Soberania e Segurança Alimentar. Em entrevista ao programa Contraponto, o coordenador do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (COMSEA) e professor do Programa de Pós-Graduação em Política Social e Direitos Humanos da UCPel, Tiago Nunes, detalhou as ações previstas e destacou a urgência de um plano municipal que enfrente de forma intersetorial a fome e seus determinantes sociais.

Soberania alimentar é alternativa política contra um sistema que produz fome

Na abertura da entrevista, Tiago Nunes explicou que a fome não é uma fatalidade, mas o resultado direto de escolhas políticas. Ao diferenciar os conceitos de segurança e soberania alimentar, ele destacou que não basta garantir comida em quantidade — é preciso assegurar alimentos saudáveis, produzidos com respeito à natureza e aos direitos trabalhistas.

“Fome não é imperfeição do sistema. É o que o sistema produz quando funciona como planejado”, afirmou. Para ele, a soberania alimentar se opõe ao modelo hegemônico baseado em venenos e monoculturas, apostando na autonomia dos territórios, no fortalecimento da agricultura familiar e em práticas agroecológicas.

A região sul do estado, segundo Nunes, abriga experiências que já apontam caminhos alternativos: hortas urbanas, cozinhas solidárias, quintais produtivos e assentamentos voltados à produção ecológica. São exemplos locais que ajudam a sustentar o debate nacional sobre justiça alimentar e climática.

Mais do que abastecer, a proposta da soberania alimentar é reorganizar o sistema de produção, distribuição e acesso à comida. “É preciso pensar desde a terra até o prato”, disse o professor. E para isso, defende, é essencial articular poder público, movimentos sociais e população.

Pré-conferência propõe ruptura com abandono histórico de diretrizes

Tiago Nunes foi enfático ao denunciar o desrespeito das gestões anteriores com os resultados das conferências municipais. As propostas aprovadas há três anos, segundo ele, não foram incorporadas às políticas públicas. “As conferências viraram carta branca para governos que ignoram as diretrizes e não tiram do papel os compromissos assumidos”, criticou.

A pré-conferência que acontece nesta semana tem, portanto, um caráter extraordinário. É um espaço de escuta e pressão popular sobre a atual gestão, com o objetivo de apresentar, discutir e aprimorar uma minuta do novo Plano Municipal de Segurança Alimentar. “É uma aposta na democracia participativa. Queremos que a sociedade civil diga o que está funcionando e o que precisa mudar”, afirmou.

O plano é dividido em quatro eixos: produção e acesso aos alimentos; educação alimentar; políticas intersetoriais; e estrutura de gestão. Nunes explicou que, apesar dos esforços da atual administração, o município ainda carece de um sistema de diagnóstico próprio. “Trabalhamos com dados do IBGE e do CadÚnico, mas é preciso avançar na coleta local”, disse.

Apesar das limitações, o cenário é preocupante. Estimativas apontam que 10 mil pessoas vivem hoje em situação de fome grave, e 40% da população está em algum nível de insegurança alimentar. “É urgente transformar esses dados em ação. Não podemos normalizar o inaceitável”, alertou.

Racismo alimentar: fome castiga territórios negros e periféricos

A fome, como destacou Nunes, não atinge todos de forma igual. Mulheres negras, mães solo e moradores das periferias estão entre os mais afetados. “A fome tem cor, tem gênero e tem território”, resumiu. Esse recorte é central na programação do seminário, que neste ano articula suas atividades com a XIV Consciência Negra da UCPel.

A mesa de abertura do evento trará o debate sobre a questão racial na produção, preservação e acesso à terra, água e alimento. O objetivo é reconhecer que o combate à fome exige enfrentar também o racismo estrutural, o patriarcado e a exclusão territorial. “Nos territórios mais afetados, quem lidera as cozinhas solidárias são mulheres negras. Elas conhecem a fome na pele e são as primeiras a combatê-la”, afirmou.

Reconhecer os saberes ancestrais e as práticas populares, segundo o coordenador do COMSEA, é um passo essencial na formulação de políticas públicas mais eficazes e justas. “A tecnocracia não basta. Precisamos escutar quem está na linha de frente da luta contra a fome”, defendeu.

O seminário também inclui discussões sobre o direito à cidade e diferentes modos de existência, conectando as pautas alimentares às disputas por moradia, mobilidade e território. “Segurança alimentar não é só uma questão de prato. É uma questão de vida digna, de pertencimento, de cidadania”, completou.

Alimentação como direito: Banquetaço e mobilização popular

Entre os atos mais simbólicos do evento está o Banquetaço, um café coletivo preparado com alimentos da agricultura familiar e assentamentos agroecológicos. Mais do que uma refeição, o ato é uma intervenção política que afirma a alimentação como um direito, e não como mercadoria.

“É a materialização da soberania alimentar”, explicou Tiago Nunes. Ao reunir diferentes públicos em torno da mesa, o Banquetaço rompe com a lógica da escassez imposta pelo mercado e celebra a abundância produzida de forma solidária. O momento também contará com apresentações culturais, como a do coletivo BatuCantada.

O coordenador do COMSEA destacou que o evento não é um ponto final, mas um passo no fortalecimento das redes locais de enfrentamento à fome. “Queremos que as discussões avancem para a construção real de políticas. Não basta debater: é preciso agir”, afirmou.

Ele também reforçou que todas as atividades são gratuitas e abertas ao público, com ou sem inscrição. “Se não puder estar nas mesas, venha para o Banquetaço, para a música, para o afeto. A luta também se faz em comunidade”, concluiu.

Serviço

Evento: VI Seminário Terra, Água e Alimento + XIV Consciência Negra UCPel + Pré-conferência de Segurança Alimentar
Datas: 4, 5 e 6 de novembro de 2025
Local: Universidade Católica de Pelotas (UCPel) – Auditório da Rua 3 de Maio
Modalidade: Presencial
Destaques:

  • Banquetaço: café coletivo com alimentos agroecológicos – 5/11, às 17h30
  • Grupos de trabalho, mesas temáticas e atividades culturais
    Promoção: GEP/UCPel, NEEPRER/UCPel e COMSEA Pelotas
    Acesso: Inscrição via link (opcional, com direito a certificado). Participação livre e gratuita.

Confira a entrevista completa no canal da RádioCom Pelotas no YouTube

Fonte: RádioCom Pelotas

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