‘Marighella’: filme de ação, escolhas humanas e ‘pulsão de vida’ em um tempo sem memória

Brasil

Exibido em vários países, ‘Marighella’ demorou dois anos para estrear no Brasil. ‘Nada disso faria sentido até chegar aqui’, diz Wagner Moura5634

São Paulo – Seu Jorge cantarola uma canção de Gonzaguinha, Pequena memória para um tempo sem memória.

Memória de um tempo onde lutar
Por seu direito
É um defeito que mata

A história do baiano Carlos Marighella, neto de escravo sudaneses, torcedor do Vitória, poeta, deputado e guerrilheiro, nascido em 1911, morto em 1969, é contada em filme que, com atraso, chega na próxima quinta-feira (4) aos cinemas brasileiros. Com várias pré-estreias a partir de amanhã (1º).

Foi um processo turbulento, que o diretor do longa, o estreante Wagner Moura, não tem dúvida de chamar de censura, ao comentar as dificuldades incomuns no trato com a Agência Nacional de Cinema (Ancine) sob o atual governo, chefiado por um admirador da ditadura que Marighella combateu até o último dia, emboscado e fuzilado na alameda Casa Branca, em São Paulo. Um local distante pouco mais de um quilômetro de onde diretor, elenco e outros integrantes da equipe deram entrevista coletiva na última sexta-feira (29).

Imaginário popular

Fascinado, como diz, pelas histórias de revoltas populares, Wagner Moura – que a princípio pensava em fazer um filme mais “simples – viu nascer a ideia ao ganhar, no verão de 2012, um exemplar do livro Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo, lançado naquele ano pelo jornalista Mário Magalhães. Recebeu das mãos de Maria Marighella, neta do ativista, atriz, também presente no filme.

Ele quis assim “devolver ao imaginário popular” a figura que ainda hoje inspira movimentos sociais e provoca reações furiosas. “Foi muito angustiante o filme não ter estreado (no Brasil) como queríamos. Nada disso (prêmios recebidos no exterior e exibição em diversos festivais, como em Berlim) faria sentido até a gente chegar aqui”, afirma o diretor.

O Marighella que emerge do filme, em mais de duas horas e meia, não é o bandido pintado pela ditadura, nem o herói mitificado. É um homem que fez suas escolhas. Abrindo mão, por exemplo, de criar seu filho (Carlinhos) e de viver com a companheira (Clara Charf, vivida por Adriana Esteves) para se dedicar à luta política. Que depois rompeu com o Partido Comunista, por discordar da forma como se dava a resistência, e formou a Ação Libertadora Nacional (ALN), para enfrentar a ditadura com armas, por não ver mais outra alternativa. Que desistiu da vida pessoal, como tantos outros na época. O filme trata disso durante todo o tempo.

Sequestro e tortura

Como o personagem do ator Jorge Paz, também chamado Jorge, inspirado no ativista Jonas (Virgílio Gomes da Silva). Homem simples, casado, três filhos, mas que também faz a opção pela luta armada, ainda que falte dinheiro para pôr comida na mesa da família. Ele tem a chance de fugir e seguir sua vida, depois que seu companheiro Humberto (Humberto Carrão) é morto pela polícia, mas acaba voltando para seu destino, ao participar do sequestro do embaixador norte-americano, em 1969, em ousada ação conjunta da ALN com o MR-8. É Jorge que protagoniza a única cena explícita, e brutal, de tortura.

Ou como a jovem guerrilheira Bella (Bella Camero), uma estudante universitária cuja opção é reprovada pela mãe. Ainda mais depois de seu grupo levar um companheiro baleado para casa. A mãe de Bella afirma a Marighella que ele é um risco para a moça. A história retrata um militante já veterano – ao lado dos companheiros ou camaradas Luiz Carlos Vasconcelos (Almir) e Herson Capri (Jorge) –, inspirando um grupo de jovens. O filme é, principalmente, sobre eles.

Sacrifício da vida

Felipe Braga, que assina o roteiro com Wagner Moura, conta que houve a opção dramatúrgica de desenvolver personagens jovens, não necessariamente estudantes, com dilemas a atormentá-los ao praticamente sacrificar suas vidas. “Eles tinham família, amores, empregos, iam pra faculdade. Tiveram que abrir mão de algo.”

Ator e diretor: Seu Jorge e Wagner Moura discutem detalhes da atuação do personagem de Carlos Marighella (Divulgação)

É um filme de ação, como seu personagem (“Marighella era pura ação”), diz Wagner Moura, que optou por mostrar os cinco últimos anos de vida de Marighella, a partir do golpe de 1964. A trama se concentra, em grande parte, entre 1968 e 1969, quando a repressão se torna mais violenta e todos os combatentes, acuados, vão caindo, um a um.

O diretor conta que gostaria de abordar o Marighella anterior à luta armada, atuando na institucionalidade, deputado federal, mas esbarrou nos limites do tempo. E também por ver no curto período da ALN material mais instigante para a ação em um filme que ele buscou tornar popular. “Além de contar essa história, queria fazer um filme popular, que comunicasse com as pessoas, então os elementos de ação encaixariam bem nessa proposta. Não há contradição entre fazer filme político e popular”, afirma.

Governo: pulsão de morte

Ele enfatiza o papel dos movimentos sociais, que acolheram o filme – a ser exibido em ocupação dos sem-teto em São Paulo e assentamento dos sem-terra na Bahia. Discorda de um protagonismo da extrema direita, no sentido do ativismo, no Brasil atual. “Essa pulsão da direita hoje não se compara com a pulsão por liberdade, por direitos, contra a opressão”, rebate. “Isso é uma pulsão de vida. A pulsão que eu vejo neste governo é uma pulsão de morte.”

Marighella, um ‘homem de ação’, nas ruas, às vezes disfarçado, foi perseguido de forma implacável pelo frio delegado Lúcio, inspirado em Fleury (Divulgação)

Outra polêmica alimentada em redes sociais refere-se ao tom de pele do personagem principal. Moura lembra que sua primeira opção para o papel tinha sido o rapper Mano Brown. “Quando Brown saiu do projeto, eu só pensava que tinha que ser um ator negro. Marighella era um homem negro. A mãe de Marighella nasceu em 1888. Os avós eram escravos sudaneses. Desconectar essa herança de Marighella, de insubordinação, me parece um desserviço. Para mim, Brown, Jorge e Marighella são três homens negros”, reage. E também comenta ataques racistas sofridos em razão do filme.

“Acho que eu acertei quando ‘empreteci’ Marighella”, diz o diretor. Segundo ele, isso permitiu escapar de um certo “embranquecimento clássico” do cinema brasileiro, uma espécie de “síndrome de escrava Isaura”. Mano Brown não está na tela, mas aparece na trilha sonora com Mil faces de um homem leal (Marighella), dos Racionais.

Símbolos nacionais

Para Seu Jorge, viver Marighella exigiu uma “reconexão” com seu país, depois de ter ido morar nos Estados Unidos, e em um momento particularmente difícil do Brasil, que tem sua imagem externa abalada. “Vinte anos viajando pelo mundo, promovendo música brasileira, vinha encontrando uma admiração pelo nosso povo, nossa cultura. Para fazer essa personagem, eu precisava me reconectar com o Brasil e suas causas, que são minhas causas.”

Nascido em 1970, no auge da ditadura, o ator e cantor viu um certo processo de “apropriação” dos símbolos nacionais, até da seleção brasileira, por um viés conservador. “A gente não vai deixar se apropriarem de uma coisa tão bonita que é o brasileiro original, sua diversidade de expressão. Parece que boa parte dos brasileiros perdeu essa conexão.” Seu Jorge faz referência a uma cena forte, exibida já depois do final, uma preparação de atores que acabou sendo filmada e entrou na montagem.

Racistas e fascistas

Bruno Gagliasso impressiona no papel de Lúcio, delegado frio e obcecado na caça aos comunistas – e a Marighella. Conta do problema que teve para viver um personagem racista e fascista. “Eu tenho filhos negros. O que mais me motivou a encontrar esse cara foi saber que eu fazia parte de um projeto muito maior. Não era só artístico, era político. Eu vejo o Lúcio que eu fiz em vários lugares, vários momentos.”

O policial chega ao guerrilheiro depois de descobrir o elo de Marighella com os dominicanos. Outro papel chave é vivido por Henrique Vieira, frei no filme, pastor na vida real. Ele exalta a coragem dos dominicanos à época (“Colocaram suas vidas à disposição de uma causa de liberdade”) e acredita que o filme “devolve Jesus à sua origem histórica”, como vítima do ódio, perseguido pelo Estado e embranquecido. “Jesus viveu numa época de ‘fora, Herodes’”, ironiza.

A fé também é engajada

Ao mesmo, pastor Henrique, como é chamado pelos colegas de filmagens, pede que os evangélicos não sejam vistos com generalização, como apoiadores do bolsonarismo. Lembra que eles estão presentes nos movimentos (negro, feminista) e cita a Frente Evangélica pelo Estado de Direito. “Eu não quero entregar esse discurso ao monopólio dos conservadores. A fé também é engajada”, afirma o ator.

No papel de um guerrilheiro impetuoso, responsável pela execução de um oficial americano, Humberto Carrão também cita a crônica falta de preservação da memória, em especial do período autoritário. Diferente da Argentina, onde centros de tortura tornaram-se espaços de memória (como a Esma), aqui quase não há esse tipo de referência.

O horror vai passar

Mas ele procura ser otimista. “A gente filmou vendo o horror que estava para chegar, acabou com o horror já instalado”, diz Humberto, acrescentando acreditar em um futuro “momento luminoso” do país. Para isso, emenda, também é preciso “gerar conhecimento, pensamento crítico, e não permitir que torturadores sejam eleitos novamente”.

Wagner Moura também acredita nisso, lembrando das cenas com jovens ao final do longa. “A gente fez um filme esperançoso. É um filme duro, cru, mas que aponta para um esperança.”

Como o garoto que perde o pai, mas vence o medo do mar, enquanto se ouve a voz de Gonzaguinha, na mesma canção cantarolada durante a entrevista por Seu Jorge.

São tantas lutas inglórias
São histórias que a história
Qualquer dia contará

Fonte: Vitor Nuzzi, da RBA

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