Mulheres denunciam violência obstétrica após agressão à médica

Há pouco mais de uma semana, a médica obstetra Scilla Lazzarotto denunciou ter sido vítima de agressão enquanto assistia uma gestante em trabalho de parto no Hospital Escola da Universidade Federal de Pelotas, zona sul do Estado. De acordo com relatos da médica, veiculados em jornais de todo o país, o esposo da gestante teria ficado inconformado quando a profissional decidiu realizar uma cesárea e passado a agredi-la com socos, pontapés, puxões de cabelo, chegando a ameaçá-la de morte, ao dizer que estava armado.

Na quarta-feira (3), Pâmela Pinheiro e Wagner Couto de Quevedo usaram sua conta no Facebook para divulgar a própria versão do que aconteceu no dia 29 de maio, no Hospital Escola. Na polícia, eles também denunciaram a médica por violência obstétrica. O rapaz, acusado de agressão pela médica, admite a violência, mas afirma que não estava armado e nunca a ameaçou de morte. “Eu não tenho orgulho do que eu fiz, mas não é nada disso que ela está falando”, afirma Wagner na gravação. “Ela torturou a minha esposa e isso foi me abalando cada vez mais”, diz ele.

Scilla havia denunciado o caso à Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) de Pelotas, que também acabou responsável pela denúncia de violência obstétrica feita por Pâmela dias depois. Márcia Chiviacowsky, titular da DEAM, afirma que já ouviu a médica e o pai e o processo está quase finalizado, faltando apenas interrogar algumas testemunhas. Ela também confirma ter ouvido falar sobre outros relatos de violência obstétrica, mas diz que não há denúncias na delegacia. “Não chegou ainda nenhum boletim de ocorrência formalizado, são apenas notícias de pessoas que virão a registrar ocorrência”, diz a delegada.

Embora sem registro na DEAM, o caso motivou uma onda de denúncias contra a médica – e também contra outros obstetras do município. Pelas redes sociais, mulheres passaram a reunir suas histórias. “Tortura” é uma das expressões recorrentes nas dezenas de relatos que vêm sendo feitos desde então. Muitas também repetem terem ouvido expressões como “na hora de fazer não doeu” ou “daqui a um ano tu tá aqui de novo”. Os desfechos apontados pelas mulheres são diversos: de sequelas psicológicas a lesões físicas. O Ministério Público Estadual confirma ter recebido, no dia 3 de junho, três relatos de violência obstétrica contra Scilla Lazzarotto, com fatos que teriam ocorrido em 2015 e 2019, e que foram remetidos à Polícia Civil para apuração.

Uma das mulheres que denunciaram Scilla ao MP foi Sabrina Hackbarth Celestino. Ela também esteve na reunião que a Comissão de Saúde da Câmara de Vereadores de Pelotas realizou no dia 4 de junho para discutir a situação. “Teve que vir esse caso à tona para muitas mulheres se manifestarem”, disse Sabrina em entrevista ao Sul21. Na reunião online na Câmara, ela questionou ainda como o hospital deixa “uma mulher carnear as pessoas” e afirmou que, em vários momentos, foi tratada pela médica da mesma forma que Pâmela descreve, no relato registrado em vídeo. Procurado, o Hospital Escola da UFPel afirma que “instaurou investigação preliminar a fim de apurar os fatos”. A instituição diz ainda, em nota, que “trabalha incessantemente no aprimoramento e incentivo de boas práticas obstétricas, seja através de cursos de capacitação, participação em redes de aperfeiçoamento das práticas humanizadas obstétricas e neonatais, seja com investimentos em estrutura para partos humanizados e fisiológicos, sempre buscando garantir não apenas um serviço adequado, mas também uma experiência positiva para a família e o bebê”.

As histórias narradas pelas mulheres, em reuniões promovidas pelas comissões de Saúde, conduzida pelo vereador Marcola (PT), e de Direitos Humanos, presidida pela vereadora Daiane Dias (PSB), e em grupos nas redes sociais, no entanto, não condizem com as práticas indicadas pelo hospital. Sabrina descreve que foi amarrada antes de dar à luz e que foi alvo de uma série de agressões verbais e físicas. Ela também diz ter sofrido uma hemorragia durante o parto que não teria sido descrita em seu prontuário médico e conta ter recebido alta sem ter sido examinada pela obstetra. De acordo com seu relato, ela só permaneceu no hospital porque a filha, com icterícia (amarelão) e suspeita de sopro cardíaco, ainda não podia ir para casa. Para Sabrina, essa acabou sendo sua sorte, pois depois de quase desmaiar e ser socorrida por outro médico, precisou receber transfusão de sangue. “Eu fiz quatro bolsas de sangue no sábado à noite e ela tinha me dado alta porque eu tava bem. Se eu tivesse ido pra casa, será que eu não estaria morta hoje?”, questiona ao relembrar o parto.

Já Pâmela, a jovem cujo esposo é acusado de agredir a obstetra, afirma que a profissional insistiu no parto normal, embora ela não tivesse dilatação suficiente e argumentasse que não tinha mais forças. “Ela transtornada, me xingando, eu pedindo desculpas e ela cada vez mais braba, xingando a gente, dizendo que se a minha filha não tinha nascido ainda era por culpa minha, que eu não tava aproveitando as contrações”, diz.

Ela afirma ainda que sentia muita dor com os procedimentos conduzidos pela médica e pediu ao marido que não deixasse mais a obstetra tocar nela. “Veio uma enfermeira e foi monitorar os batimentos cardíacos da minha filha e tavam muito baixos. Ela falou: se ela nascer com problemas, se ela morrer é culpa de vocês, vocês são umas crianças, são uns incompetentes, foi nessa hora que meu esposo empurrou ela”. Ainda de acordo com o relato de Pâmela, a médica teria dito que ia fazer uma cesárea de emergência porque “a mãe não estava ajudando e o feto já estava em sofrimento”. Pâmela afirma que a criança precisou ser reanimada logo após o parto.

Jaíne Quevedo também esteve na reunião da comissão de Saúde, mas para contar a história da mãe, Eliane, que ela acompanhou durante o pré-natal e o parto, na Santa Casa de Pelotas, há cerca de um ano. De acordo com Jaíne, a mãe estava encerrando um tratamento oncológico quando soube da gravidez, aos 42 anos. A oncologista que a acompanhava teria orientado que ela fosse submetida a uma cesariana em função do contexto. Jaíne afirma que as orientações foram ignoradas e que ela viu a mãe ser rasgada, costurada, ter hemorragia, e passar novamente por cortes e pontos. “Vi meu irmão preso pelo bumbum por tanto tempo que ficou roxo, vi ele ser retirado à força e nascer quase sem vida”.

Juliana Borges Victoria Eberhardt, doula e vice-presidente da Nascer Sorrindo Pelotas, grupo de apoio ao parto humanizado no município, explica que, em geral, a violência obstétrica está muito mais ligada à assistência do que ao trabalho de parto. De acordo com ela, qualquer tipo de violência física, psicológica ou sexual sofrida pela mulher no contexto do parto pode se enquadrar no conceito. “Por exemplo, colocar o famoso sorinho (ocitocina sintética) só pra acelerar, sem indicação clínica, ou xingar a mulher em trabalho de parto com frases como ‘na hora de fazer não gritou’, como se dor do parto fosse uma punição por ter tido relações sexuais, ou ainda dizer que a mulher não está ajudando, que o bebê pode morrer”.

Juliana explica ainda que há práticas que são contraindicadas pelo próprio Ministério da Saúde – como a manobra de Kristeller (em que a barriga da mulher é pressionada para tentar provocar a expulsão do bebê) – e outras que podem ser consideradas violências quando mal empregadas, mas cujo uso correto pode ajudar a salvar vidas. É o caso do fórceps, que poderia ser útil em caso de exaustão da mãe e sofrimento do bebê, por exemplo, mas que, de acordo com a doula, mal usado “acaba sendo um instrumento de tortura”. Além disso, o fórceps ou qualquer outro procedimento realizado no parto deve ser informado à parturiente. Juliana diz que o trabalho da Nascer Sorrindo é importante justamente para levar informação às mulheres, “para que, quando chegue no parto, elas saibam o que está acontecendo”.

Laura Cardoso, advogada, presidente da Nascer Sorrindo e vice-presidente do coletivo nacional de enfrentamento à violência obstétrica Nascer Direito, diz que o debate sobre o assunto no município não é novo. Em 2016 foi pautado no legislativo, em audiências públicas promovidas pelo mandato da vereadora Fernanda Miranda (PSOL) e, em 2019, ganhou força após a morte de Débora Pinto Duarte. A jovem de 22 anos faleceu em janeiro, depois de uma cesariana na Santa Casa de Pelotas. De acordo com o boletim médico, ela teve hemorragia e acabou entrando em coma. Após o falecimento, a família registrou ocorrência e um inquérito por homicídio culposo foi aberto na Polícia Civil para investigar o caso. Além disso, a Câmara aprovou e o Executivo sancionou, também em 2019, após idas e vindas, a chamada Lei do Parto Seguro. O projeto de lei inicial, aprovado por unanimidade na Câmara, foi vetado pela prefeita Paula Mascarenhas (PSDB) e voltou à discussão no legislativo sob pressão da classe médica, especialmente pelo uso da expressão “violência obstétrica”, que acabou retirada da lei. Segundo afirmou o Simers à época, o termo “não dava segurança jurídica para o exercício da medicina”.

Agora, um movimento autônomo de mulheres voltou a emergir, trazendo relatos de violência no município desde que o caso denunciado pela obstetra do Hospital Escola veio a público. “A Nascer Sorrindo não coaduna com nenhum tipo de violência, mas, se estamos falando de violência de gênero, precisamos falar de violência obstétrica, e ela tem muitas nuances”, afirma Laura. A advogada acredita que, numa situação dessas, “as mulheres sabem que algo de errado aconteceu, mas não conseguem expressar, ninguém ensina”. A entidade vem atuando no acolhimento e orientação de mulheres que buscam denunciar situações de violência. Um questionário foi elaborado para coletar os dados e as mulheres que desejam têm sido orientadas a denunciar junto ao Ministério Público. Até esta quarta-feira (9), 142 mulheres já haviam preenchido o documento. “É nesses momentos que o movimento acaba se fortalecendo, faz com que outras mulheres, mesmo em momento muito triste, tragam seus relatos para contribuir”, diz Laura.

A agressão à obstetra mobilizou o Simers. Representantes da entidade têm se reunido com a prefeita, a secretária municipal de Saúde, Roberta Paganini, a delegada responsável pelo caso e, segundo o diretor de Interior do Simers, Fernando Uberti, atuado intensamente na mídia, “denunciado o que aconteceu, lutando por garantias de segurança aos médicos”. Ele diz que a entidade participou inclusive de uma vistoria no Hospital Escola nesta segunda-feira (8) para verificar questões de segurança e que está pleiteando mudanças na legislação estadual, para exigir, por exemplo, que acompanhantes tenham que frequentar ao menos três consultas do pré-natal, e federal, pedindo uma punição criminal mais rígida contra agressores de profissionais de saúde.

Já sobre as denúncias contra a médica, Uberti defende que elas “não são amparadas em algo técnico, mas numa bandeira política”. “Na nossa visão, é uma tentativa de relativizar um ato injustificável, que é uma agressão contra uma médica no seu ambiente de trabalho”, diz o diretor do Simers. Ainda segundo Uberti, mesmo que a médica tivesse cometido um erro – e ele ressalta não acreditar que seja o caso -, a agressão não seria justificável.

Estudo de 2010 indica que uma em cada quatro mulheres já foi vítima de violência obstétrica. Foto: Pixabay

Violência obstétrica

Em maio de 2019, em um despacho oficial, o Ministério da Saúde pediu que o termo “violência obstétrica” não fosse mais usado em documentos de políticas públicas do governo. O despacho afirmava que “tanto o profissional de saúde quanto os de outras áreas não têm a intencionalidade de prejudicar ou causar dano” à mulher grávida e, portanto, não se deve falar em práticas de violência.

Diversas organizações reagiram ao anúncio da pasta e o Ministério Público Federal recomendou que fosse esclarecido que o termo “violência obstétrica” é consagrado em documentos científicos, legais e que a expressão pode ser usada por profissionais de saúde, independentemente da preferência do governo Federal.

Estudo de 2010 intitulado Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, produzido pelo SESC e a Fundação Perseu Abramo, estima que uma em cada quatro mulheres já foi vítima de violência obstétrica no país.

Em 2014, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou uma declaração em diversos idiomas contra a violência obstétrica. O documento afirma que, no mundo inteiro, muitas mulheres sofrem abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto nas instituições de saúde. “Tal tratamento não apenas viola os direitos das mulheres ao cuidado respeitoso, mas também ameaça o direito à vida, à saúde, à integridade física e à não-discriminação. Esta declaração convoca maior ação, diálogo, pesquisa e mobilização sobre este importante tema de saúde pública e direitos humanos”.

A OMS considera violência obstétrica agressão verbal, procedimentos médicos não consentidos, violação de privacidade, violência física, a não permissão da presença de acompanhante, a não elucidação dos procedimentos que serão feitos, bem como a realização de processos desnecessárias à mulher e a falta de acesso a exames e consulta durante o pré-natal e o puerpério.

A indução de gestantes a realizarem uma cesárea também é alvo de críticas por parte da OMS. O Brasil é o segundo colocado em número de procedimentos do tipo, atrás somente da República Dominicana, com uma taxa de 55% em relação ao total de partos. O contexto de violência que muitas vezes cerca todo o processo, no entanto, acaba promovendo justamente o contrário, levando a mulher a pedir um procedimento cirúrgico para escapar de outras formas de violência, verbais e físicas.

Juliana explica que um parto humanizado não significa, por exemplo, forçar um parto normal, mas garantir que a mulher tenha boa assistência e não seja submetida a procedimentos desnecessários, que não lhe são explicados.

“O sistema só te oferece duas opções, uma praia paradisíaca e um cenário de pós-guerra. A alternativa à violência não é uma cesárea, a alternativa é um parto humanizado”, diz Laura.

O Sul21 entrou em contato com a advogada de Scilla Lazzarotto e, conforme solicitado, encaminhou perguntas para que ela pudesse expressar suas posições sobre o episódio. As perguntas não foram respondidas até o fechamento dessa reportagem. O espaço segue aberto à médica para que ela possa se manifestar.

Foto: Hospital Escola UFPEL EBSERH/Divulgação

Fonte: Ana Ávila / Sul 21

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